Imortalizada por Gabriel Garcia Márquez, a heroica Cartagena das Índias é traduzida em uma realidade menos fantástica além das muralhas que enclausuram a cidade. A poucos metros do cenário descascado de cartão postal, é Pedro Blas Júlio Romero quem circula à vontade como autoridade das letras. Responsável por retratar em versos a violência das guerrilhas e do exército colombiano, o poeta de 67 anos é também um dos principais ativistas a denunciar o flagrante processo de gentrificação em Getsemaní, bairro histórico da cidade, alvo da voracidade da especulação imobiliária que o faz “castrado de sol”.
Nascido e criado no bairro, Blas transformou seus vizinhos, amigos e paixões de juventude em personagens de seus livros, como forma de valorizar a identidade do bairro, um enclave de resistência negra, palco das primeiras batalhas pela independência no período colonial. Hoje, o poeta denuncia uma nova “conquista de território” por estrangeiros, ávidos a transformar os casarios seculares em bares, restaurantes e hotéis pretensamente descolados. “A cultura é uma forma de trazer de volta às ruas o cartagenero, esse cidadão excluído da cidade.”
Vencedor do prêmio nacional de poesia, em 1993, Blas viveu a maior parte do tempo na região, antes de viajar por 26 anos pelo mundo como marinheiro. O período sob a rigidez militar inspirou sua primeira obra, Cartas de um Soldado Desconhecido (1971), em que relatou as violações institucionalizadas pelo Estado e naturalizadas pela sociedade colombiana. Em suas viagens, esteve em Salvador e Cachoeira, reconhecidas como cidades-irmãs de Cartagena e que emocionam o poeta pela semelhança da “solene desordem encharcada de vida”.
Cartagena e Cachoeira são declaradas cidades-irmãs, quais as semelhanças?
Estive na Bahia, em Cachoeira, há cinco anos. Há algo muito similar por que a leva de escravizados se deu simultaneamente do porto de Moçambique, que nessa época estava nas mãos do colonialismo belga e se chamava Zanzibar. Saia simultaneamente escravos para Cachoeira e para Cartagena e é pouca a diferença entre a independência de Cachoeira, em julho, e de Cartagena, em novembro. Quando estive lá, estava observando os tambores em um átrio muito semelhante a esse da Santíssima Trindade, me caíram lágrimas por ver tão real essa manifestação de irmandade.
O que levou a cidade a se tornar referência em processos de gentrificação?
Assim como em toda a Colômbia, os cartageneros têm uma crise de hispanidade. Eles queriam ser espanhóis, se sentem burbons de olhos azuis, mesmo que a Espanha os repudiasse. No século XVI, eles proibiram o ingresso de estrangeiros que não tivessem sangue espanhol. Eles não queriam negros próximos. Há um plano macabro, a tragédia do despojo, onde o nativo é jogado de forma humilhante para as periferias. Primeiro desocuparam o centro histórico, que hoje é uma tumba, um mausoléu. Há hotéis cinco estrelas, restaurantes, casinos. Mas não tem o cartagenero. Assim aconteceu em Chambacú, San Diego e agora em Getsemaní.
Essas remoções ocorreram em momentos distintos. Quais as semelhanças?
Chambacú era um bairro de negros, que foi desalojado de maneira prussiana. Em uma madrugada qualquer os caminhões chegaram e puseram todos pra fora. Hoje em Getsemaní nos desalojam na forma americana, pelos impostos. Nos dois casos, a burocracia oficial impede a permanência dos cidadãos no território. Eles criaram uma zona urbana exclusiva, com aumento do imposto, das contas de luz, gás, água. São tarifas elevadas que a gente não pode pagar. Desesperadas, as pessoas vendem as casas. É uma batalha que perdemos.
Como isso ocorreu em Getsemaní?
As famílias negras viviam aqui desde a construção das muralhas, em barracos de madeira que ainda existem. Aqui se reuniu a população dita degenerada e aqui começou a libertação de Cartagena, por que essa comunidade se firmou como um bastião de resistência, como nos blocos festivos do século XVI, a própria essência de africanidade. Era um bairro de muita festa, uma festa multicolorida, onde havia música que alegrava a todos. Com crianças dançando nas ruas, com muita sensualidade rítmica. Cresci nessas ruas, vi essa festa na meninice, mas hoje está apagada, perdida. Hoje, aqui é aonde os gringos vem se embebedar.
Quais os impactos desse processo sobre a identidade da população de Cartagena?
A conquista do território estabelece uma ordem imperativa de respeitar não quem se parece, mas os outros, brancos. Terminaram convencendo aos negros que são pouca coisa. Mas a matriz africana está viva desde tempos imemoriais. Mesmo com a violência da conquista, essas referências e símbolos permanecem, ainda que adormecidos, oprimidos em meio ao processo de deslocamento. Chega um tempo em que não se pode mais viver com esse peso.
Qual o lugar do negro em Cartagena hoje?
Cartagena é uma das cidades mais duras para os negros. Somos um atrativo para o turismo oficial. O negro é visto como um postal exótico que dança, que faz graça, como um animal atrativo. Mas não tem uma presença de respeito, aqui, com o corpo negro. Ele não está nas esferas do poder. Continuamos vivendo com o racismo que no século passado proibia todas as festas e a poesia dos negros. É o que se vive hoje em Cartagena. Falo de racismo em meus escritos, mas aqui o dissimulam, dizem que é mentira, continuam menosprezando e subjugando a cultura negra, apartando com a hipocrisia de sempre.
Como esse menosprezo afeta a cultura?
Toda proposta que seja fora dessa concepção exótica, a destroem os senhores da oficialidade, a quem interessam que as pessoas vendam as casas. É uma dessas antipatias provincianas dos que se acham bourbons. Em 1930, o poeta Jorge Artel, que nasceu no bairro, foi proibido de escrever temas negros nos jornais. Ainda hoje, quando há uma manifestação da cultura negra, os setores feudais a constrangem. Eu e um grupo resgatamos a tradição dos cabildos de negros do século XVI, que sai no bairro durante o carnaval, em novembro, consagrado aos orixás. O cabildo resgata a autêntica festa cartagenera, ante a oficial, elitista. Fomos criticados.
Qual o sentido da palavra resistência ante esses processos de segregação?
Quando abro os olhos, saio de casa, vejo um negro envergonhado, abatido. Antes, aqui, se via negros orgulhosos, não submissos, como Jorge Artel, mas ele é uma referência distante das novas gerações. Por isso fundamos o cabildo para frear a ameaça contra o bairro. A resistência se dá na cultura, para trazer de volta à rua o cartagenero, esse cidadão excluído da sua cidade. É inegável que países onde há oportunidades de enfrentar o racismo, falar sobre, se permite que o negro supere a opressão. Aqui, silenciamos, fechamos as portas, apontamos armas.
No livro Cartas de um soldado desconhecido (1971) o senhor dizia que o País construía uma geração ‘afogada em ódio’, em função das violações durante o conflito. O que mudou?
Não mudamos nada. A base deste Estado é um genocídio, que vivemos ainda hoje. Os setores mais vitimados foram os negros, uma vez que a proposta dos assentamentos paramilitares, em todo o caribe colombiano, era apagar do território todo vestígio negro. É a mesma implantação racista de antes da colônia, na colônia e depois, na república. São mais de 200 anos de abandono do Estado, por que não há Estado. Há um governo corrupto, fundado no saqueio da coisa pública e na perseguição aos negros e indígenas e em negar-lhe espaços.
Como o senhor enxerga o processo de paz com as Farc?
O acordo de paz é algo circense. A oligarquia politiqueira sempre busca um pretexto, uma vitrine para contar mais votos e continuar a farsa. Se não há um programa de respeito e consideração para o povo, de educação e saúde, a guerra vai continuar. Acaba a Farc, mas continuam a ELN, as quadrilhas, o tráfico de drogas. A Colômbia não tem plataforma equitativa para seu povo, então o plebiscito é mais uma artimanha política de uma época estranha. É também midiático, e a imprensa conduz o povo a um nível de fundamentalismo, de tomar partido pelo sim ou não para depois matar uns aos outros em discordância.