Aracataca (Colômbia) – Na parede branca, de rodapé azul, bem ao lado da janela com grade, algumas marcas conhecidas. Twitter, YouTube, Yahoo, Skype dividem um lado da fachada. Do outro, aparecem Facebook, Google. O traço é imperfeito. Estão ali pintadas à mão. Na loja do lado, outra marca globalizada. Desta vez, produto para emagrecimento. Coisa de mundo em que basta olhar para saber o que é. A bicicleta verde, velha, de guidón enferrujado, estacionada na porta, é um contraste. Sinal de tempo. E que tempo!
De uma época bem anterior à invenção desse meio de transporte de duas rodas. Imagina, então, da internet. Quando aquele lugarejo não deveria ter mais do que vinte casas de barro e taquara. Em que o mundo era tão recente, que aí sim era preciso nominar tudo e ainda apontar com os dedos para saber exatamente do que se estava falando. Onde a invenção do gelo surgiu com o sonho de fazer dali uma cidade invernal. O calor, porém, continua infernal e ainda assim ninguém tira daquele lugar o clima de realismo fantástico.
Pois mesmo com borboletas amarelas desenhadas nas paredes coloridas, ruas de concreto, mototaxistas pra todos os lados, loja de produtos chineses, venda de créditos de celular por toda parte, no imaginário de quem vive em Aracataca, nunca vai deixar de ser a Macondo. O município no interior da Colômbia, a 255 km de Cartagena serviu de inspiração para a vila fictícia criada por Gabriel García Márquez em 100 anos de solidão. Será Macondo para sempre porque há uma nova geração de “cataqueños” preparada para cuidar disso.
“Nossa cidade entrou na história por esse grande personagem ter nascido aqui no dia 06 de março de 1927”, explica a estudante Valéria Sofia, de dez anos. “Foi em um domingo, às 8h30 da manhã”, completou Marlys Claro, de 11. Elas sabem mais coisas sobre a vida de Gabo de cor. Sobre os livros também. Valéria tem Diário de um náufrago como predileto, enquanto Marlys prefere 100 anos de solidão. Por mais que ela nunca tenha tido a chance de chegar perto de Gabo – a última vez que ele esteve na cidade a estudante tinha apenas quatro anos – um dos cenários do livro que escolheu para a cabeceira tem a ver com a família dela. O avô de Marlys mora duas casas depois daquela em que nasceu Gabriel García Márquez. Não há dúvidas de que é o local mais emblemático de Aracataca.
Tal como o próprio descreve a sala de José Acardio Buendía, o local onde morava os avós – o coronel Nicolás Ricardo Márquez Mejía, a quem os netos chamavam Papalelo e a avó Tranquilina Iguarán, tratada carinhosamente de Mina – também tem uma saleta ampla e bem iluminada. Do mesmo modo, sala de jantar é em forma de terraço, com flores de cores alegres no corredor. A casa existe desta forma hoje em Aracataca porque foi totalmente reconstruída, com o apoio de Gabo. A iniciativa partiu do compositor Jorge Carrillo Gusman.
Dois anos depois da vitória de García Márquez no prêmio Nobel, o autor do hino de Aracataca decidiu procurá-lo para propor a reconstrução da memória do escritor no município. “Busquei em Cartagena, no jornal El Universal, que ele tinha trabalhado até conseguir localizá-lo”. Como conta Gusman, Gabo vibrou com a ideia, enviou arquitetos de outros locais para conhecer o terreno. A casa reproduzida tal qual está registrada na lembrança e hoje abriga o Museu Gabriel García Marquez.
Apesar da arquitetura seguir o modelo antigo, os móveis e objetos que ali estão são exemplares da mesma época, porém não são originais. Gabriel García Márquez saiu de Aracataca aos oito anos de idade e nunca mais voltou a morar ali. No primeiro capítulo da autobiografia Vivir para contar, narra a viagem que fez com a mãe ao lugarejo na tentativa de vender a casa. Para Gusman, a inauguração do museu coincidiu com um movimento nas escolas de Aracataca de valorização da literatura García Marqueana.
“Houve um empoderamento de algo que se desconhecia e parecia utópico. Hoje as crianças já conhecem a literatura dele, inclusive tem uma disciplina dedicada a isso”, explica Gusman. O trabalho na sala de aula surgiu em um momento em que a relação entre o escritor e a cidade precisava ser vista de outro modo. Andava meio estremecida.
CONTRASTE – Se a nova geração de Aracataca hoje demonstra orgulho ao falar sobre Gabriel García Márquez, os mais velhos sempre deixam transparecer certa mágoa do escritor. “Gabo não pára aqui, mas é uma pessoa muito correta. Há uma quantidade de histórias sobre ele, umas boas outras más. Eu prefiro as boas”, despista o pedreiro Daniel Molina, enquanto compra uma sacola lotada de bananas verdes. Entre uma conversa e outra sobre as plantações de banana a caminho de Macondo, Molina dá mais detalhes. Ele diz que há quem culpe o escritor por Aracataca não ter evoluído.
“Quando ele veio aqui, não consegui chegar perto, mas meu irmão foi o motorista do carro em que andava. Contou que Gabo ficou super orgulhoso. Ele não pensava que Aracataca ia crescer tanto. Os políticos locais é que tem culpa do povoado ainda estar atrasado. García Márquez queria que tivesse desenvolvido”, defende o pedreiro Victor Meriño. Assim como Daniel Molina, ele acha exagerada a cobrança dos veteranos.
Há mesmo ainda muita simplicidade e dificuldade no modo de viver por lá. A parte do tempo úmido e quente, para se ter uma ideia, nem água encanada é uma realidade para todos os moradores. Por isso, é comum que no banheiro das casas se encontrem grande galões. Apenas por um momento do dia água pinga do chuveiro ou banheiro. É hora de encher o reservatório para depois tomar banho, escovar os dentes, lavar as mãos, tudo de cuia.
Se o município ainda necessita de infra-estrutura básica para quem vive ali, imagine para receber visitantes. É praticamente inviável. O único albergue que existia em Aracataca fechou há poucos dias. Era mantido por um europeu que inclusive adotou por conta própria o sobrenome de Buendía, tal como os herdeiros de Aureliano, personagem de 100 anos de solidão. Tem restaurante, repleto de referências ao personagem ilustre, mas ainda com estrutura muito caseira.
“Tem pessoas que são ressentidas pelo fato de Gabo não vir mais aqui. Para quê vir aqui? Um prêmio Nobel nascido em Aracataca é mais bonita representação da cidade no mundo todo”, defende a professora Dora Osório. “Somos de Aracataca e queremos que este lugarejo fique melhor, tenha melhores ruas e outras condições. Gabriel já fez o que podia. Ganhou o prêmio Nobel e já nos fez aparecer em nível internacional”, completa a também professora Yadira Ramirez.
O escritor Gilberto Tejeda, credita a ausência de Gabriel García Márquez em Aracataca pelo enorme assédio. Gabo é um homem de hábitos simples, tal como seus conterrâneos, como diz Tejeda. “Aracataca é um lugarejo onde todos os escritores, pintores, poetas somos silvestres, como as borboletas amarelas”. Com um livro que ele mesmo editou debaixo do braço, o cataqueño garante que ali é um lugar onde o incrível parece realidade. “Gabo narra isso com uma claridade impressionante. Aracataca tem muita história para contar. Leva esse livro e leia-lo”, disse, entregando o exemplar de Los amores de um cabron soñador.
Frases
“Eu me sinto muito orgulhosa de ser daqui de Aracataca. Imagino que ele é uma pessoa que tem muita imaginação e graças a isso, esta onde está. Temos que agradecer a Deus e à imaginação de Gabo de estarmos onde estamos”, Dora Osório, professora.
“Gabro recebeu o premio de literatura, a nível mundial e é o único que nos faz aparecer na televisão”, Yadira Ramirez, professora.
“Não diria que é um personagem. Gabo é muito mais. É como dizer que Aracataca é mais que um nome, é uma historia para contar”, Jorge Carrillo Gusman, compositor
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A família de Gabriel García Márquez chegou em Aracataca 17 anos antes do nascimento dele, portanto em 1910. O escritor morou na casa dos avós até completar oito anos de idade e desde então fez visitas bastante esporádicas à terra natal. Atualmente o autor colombiano vive no México.