Numa cidade colombiana, um jornalista português encontra-se com um realizador iraniano que fez um filme japonês. Mais parece um argumento de Alejandro González Iñarritu, mas esta é a nossa história com Abbas Kiarostami . O autor de Like Someone in Love tanto transforma o local em universal, quanto o universal em local. Como dizia José Rodrigues Miguéis: “O universal está no meu quintal, a questão é saber cavar”. Percebemos agora que também o podemos cavar no quintal dos outros.
Foi o que fizemos. Para quintal, Cartagena de Índias é particularmente colorida, talvez se pareça mais com um pomar de frutas exóticas. Entre muralhas, com casas em estilo colonial, semelhantes a Trinidade ou Olinda, não é preciso cavar fundo para desenterrar tesouros. Basta ver as igrejas, os solares, os recantos, os pormenores, as gentes. Contudo, nada faria prever que, escavando um pouco ao lado, nos saísse um realizador iraniano e, sobretudo, do mundo.
Fizemos a viagem para frequentar a bolsa de jornalismo cultural Gabriel García Márquez, que reuniu, em Cartagena de Índias, durante 10 dias, 15 jornalistas, de 11 países diferentes. E Kiarostami viajou até ali para ser homenageado no festival de cinema da cidade. Como é habitual, redigiu um contrato minucioso, delimitando todas as suas obrigações e compromissos: cada masterclass, cada apresentação de filme, cada encontro formal. Entrevistas, não quis dar nenhuma. Todavia, talvez por admirar Gabo (como carinhosamente chamam a García Márquez), aceitou encontrar-se connosco.
Achámo-nos, assim, numa das esquinas do mundo, não por acaso, mas porque forçámos a coincidência. Já era de noite, mas ainda estava calor na casa do cunhado do escritor americano Jonathan Levi, um dos tutores da bolsa, mesmo no centro de Cartagena. Uma casa apalaçada em estilo colonial, de um pé direito vertiginoso, como um pátio fechado, que termina numa pequena piscina reluzente. Kiarostami chega discreto, acompanhado pelo seu tradutor, Mohamada Ahmad, inseparável como uma bengala ou uns óculos de ver ao perto. Passeia-se, sem grandes comentários, contemplando apenas beleza do espaço envolvente. Até que, finalmente, se senta no sofá. Nós dispomo-nos em seu redor, numa solenidade informal. É verdade que estamos perante uma lenda viva do cinema mundial, contudo ele apresenta-se simples e acessível, além de sábio.
Vamos falando do seu cinema, e da forma como conquistou o mundo a partir do Irão. E da surpresa que é vê-lo em paragens improváveis, como o Japão de Like Someone in Love.
“Para sermos universais temos que ser locais. Eu rodei quatro filmes fora do Irão. Foram difíceis de fazer. Quando vejo Cópia Certificada ou Like Someone in Love, tenho uma sensação estranha, é como se estivesse a ver um filme de outra pessoa.”
Os filmes são sempre seus, claro. Em Cópia Certificada talvez fuja demasiado da sua voz, mas em Like Someone in Love, o Kiarostami de sempre está lá. E até, por estranho que possa parecer, descobrimos um pouco de Irão.
“Não escolhes onde nasces, mas não tens de morrer no mesmo sítio. Podes mexer-te sem levantar os pés, as tuas raízes nunca saem do lugar. Podes mudar-te, que as tuas raízes continuam lá”
Like Someone in Love é uma homenagem implícita a Yasujiro Ozu, um dos realizadores que mais o influenciou. Conta com atores e técnicos nipónicos e é falado em japonês, uma língua que o realizador desconhece. Mas garante-nos que não se perdeu na tradução.
“O problema da língua resolve-se da mesma forma que nós aqui: apesar de não falarmos o mesmo idioma, conseguimos comunicar”.
Na verdade, mantemos a nossa conversa em três idiomas. Fazemos as perguntas em inglês, Kiarostami responde em persa, e Ahmad Mommad traduz para espanhol. Esta confusão linguística não dificulta a conversa, pelo contrário, obriga-a a um tom pausado, que faz com que as ideias fluam de forma mais meditada. Um pouco como o seu próprio cinema, que dá tempo aos lugares e tantas vezes é contemplativo. Para muito é um poeta das imagens. A relação não lhe parece assim tão evidente.
”Não cheguei ao cinema por via da literatura. O meu sonho era ser pintor. O curso que deveria demorar quatro anos, terminei-o em três, porque era muito mau. Mas imagens são a minha forma de expressão. Durante cerca de dez anos fiz filmes publicitários, estava ainda mais distante da poesia. A literatura não entrou diretamente na minha vida, mas, por outro lado, como seria possível fazer cinema sem literatura?”
O cinema, claro, também é feito de palavras. Aliás, é na palavra, na escrita de um argumento, que tudo começa.
“Não podemos separar a palavra da imagem. Quando estamos sentados em frente ao mar não vemos apenas as ondas do mar, recordamo-nos com quem estivemos ali . Se é apenas sobre o mar torna-se aborrecido.”
E a literatura sente-se não só no cinema, mas também no discurso do poeta publicado Abbas Karostami. Gosta de citar poemas para ilustrar as suas ideias, como se a sabedoria dos poetas antigos se encontrassem todas as respostas para todas as perguntas do mundo.
“É inegável, que o Irão é um pais de poesia. Não é uma escolha, a poesia impõe-se. Até muitos analfabetos estão ligados a ela, porque há uma tradição de transmissão oral. De facto, a literatura poética está presente no quotidiano.”
Nos seus primeiros filmes, descobrimo-la em pequenas escolhas, como uma noção particular do tempo ou a opção por planos abertos.
“Já se sabe que o cinema vem do teatro. Há que respeitá-lo. No teatro sento-me e escolho para onde olhar na cena. Esse direito do espectador foi castrado pelo realizador. Tu não tens o direito a ver tudo como antes, eu decido o que podes ver. A câmara retirou essa inteligência ao público. Quando a câmara é muito ativa, aborreço-me, é como se me estivessem constantemente a obrigar-me a mudar de lugar na sala. Por isso, penso, que o poder de um filme reside nos seus planos abertos. Permitem ao espectador que escolha o que quer ver.”
Kiarostami gosta de câmara fixa, enquadramentos amplos, histórias simples. Mas tal não o torna um conservador. Pelo contrário, sempre ousou experimentar, como em Shirin onde filma os rostos das mulheres que assistem a um filme em Teerão, transformando a audiência no próprio filme. Além disso, foi um dos pioneiros do digital. Uma invenção que, de certa forma, lhe salvou a vida.
“Venho de um país em que o uso das câmaras de 35 mm torturava os cineastas. Tínhamos que repetir várias vezes as cenas, pois no laboratório, na revelação, em alguma parte falhava. Então, deixei de fazer cinema e passei a fazer fotografia, porque assim podia controlar a tecnologia . Há 20 e muitos anos, quando fui ao Japão, vi uma câmara digital e comprei-a . Foi surpreendente. Permitiu-me voltar a fazer o cinema que queria. Esta câmara pode ajudar o cinema, salvando-o das mãos dos capitalistas, é como um pincel na mão de um pintor”.
A apologia do digital não implica uma sintonia ou simpatia com o cinema contemporâneo. Está nos antípodas de Hollywood, é uma estrela de world cinema.
“Atualmente vou pouco ao cinema. Quando vou, às vezes, peço que me traduzam o que querem dizer, mesmo quando falam persa. Não sei quem é quem, onde estão… não há uma fotografia sincera. Como podemos contar uma história sem um espaço? Como podemos fazer um filme sem nos dedicarmos às personagens? No cinema de hoje a arquitetura e a fotografia desapareceram.”
Não se cansa de elogiar, todavia, a realizadora argentina Celina Murga, com que partilhou uma masterclass e descobriu uma enorme afinidade cinematográfica. O seu último filme, A Terceira Orelha, está em competição, em Cartagena. Também ele se lembra de sofrer quando O Sabor das Cerejas foi exibido em Cannes.
“Não queria ficar na sala. Mas insistiram comigo. O produtor disse que era porque tinha medo de adormecer durante o meu próprio filme. Na verdade, apenas não queria ver as pessoas a saírem da sala a meio. E se algum crítico conhecido saísse… Vi o filme de mão dada com o produtor ”.
Nós estamos ali e não queremos sair da sala nem por nada, mas já é tarde e temos de respeitar o horário combinado fora do contrato. Kiarostami, no entanto, alonga um pouco mais a conversa e, porque estamos na Colômbia, antes de se despedir, pergunta-nos por Gabriel García Márquez, um dos maiores mestres em tornar o local universal. Não nos fala de Macondo que, na verdade, tem um correspondente no mundo real, chamado Aracataca (onde Gabo nasceu), a 250 quilómetros de ali, mas de Memorias de Minhas Putas Tristes.
“Disseram-me que García Márquez escreveu uma história parecida com Like Someone in Love, em que um velho se apaixona para uma rapariga. Onde fica esse local?”
Fica em Barranquilha, uma cidade vizinha. Abbas Kiarostami sorri, por baixo dos seus óculos escuros, sempre ao lado do tradutor, que assegura o contacto entre os nossos dois mundos. Talvez, quem sabe?, o seu próximo filme seja na Colômbia. Ou em Portugal. Certo é que, onde quer que cave, Abbas Kiarostami descobrir-nos-á.