Caña de millo, a flauta canta ao luar

Caña de millo, a flauta canta ao luar

Além de cañamillero, Sergio faz e vende flautas para toda a região, para vários músicos de cumbia, como Pedro “Ramaya” Béltran, o maestro da flauta, cañamillero de alma e coração, talvez um dos mais importantes da Colômbia. E vive apenas a três passos de Caracoli.
Pedro Remaya tocando la Flauta. Edwin Padilla/ Archivo FNPI
Raquel Ribeiro

Sergio conta as luas para poder cortar a cana no momento certo. Nem antes, nem depois: há apenas o momento certo, aquele em que a cana vai ser transformada em flauta. “Se a corto antes do tempo, os sucos não a deixam secar bem e apodrece rapidamente. Se a corto depois do tempo, já estará demasiado seca. A cana tem de estar madura”, diz Sergio Zambrano, 49 anos, flautista, isto é, na Colômbia é cañamillero, tocador de flauta de millo, artesão de flautas. Agora é tempo de fazer flautas: o milho está gordo e pronto para a colheita.

Não há cumbia sem flauta de millo. Não há Carnaval sem cumbia. E não há Barranquila sem o seu Carnaval. O som da alma do carnaval vem daquela pequena, frágil e delicada flauta feita com uma espécie de cana de milho, que cresce abundante nas margens do rio Magdalena e vive no coração da música costeña, melodia do Caribe colombiano.

Ao contrário de outros carnavais caribenhos em que instrumentos de sopro metálico são fundamentais – trompetas, trombones e tubas marcam o ritmo frenético do Mardi Gras de Nova Orleães ou as festividades de Santiago de Cuba em Junho –, é o elemento indígena, quase extinto noutros carnavais do Caribe, que define a música de Barranquilla (e, por extensão, também a costeña): flautas e gaitas feitas de materiais típicos da região – maiz, millo, carrizo, ou, em português, milho, milho-miúdo, cana.

Diz a lenda que um índio das margens do rio Magdalena pôs a cana de milho oblíqua na sua boca, como se a beijasse, junto aos lábios, e se disfarçou de pássaro. Fê-lo tantas vezes, que numa noite de cumbias a flauta se fundiu com a sua face, como uma máscara, e ele se transformou em pássaro. Assim nasceram os cañamilleros.

A história de Sergio é ao revés: primeiro aprendeu a fazer flautas, só depois a tocá-las. “Comecei a tocar já tarde, tinha 19 anos”, conta. Tios e padrinhos tocavam guitarras mas Sergio só queria saber do sopro, do “instrumento de vento”.

Antes o millo era o material nobre e original da flauta. Mas a sua fragilidade podia ser frustrante para os músicos: a flauta era tão delicada que facilmente se partia, não podia apanhar humidade, nem água, se o calor apertasse tinha de ser protegida. “Amigos meus, cañamilleros, quando viajam a Bogotá levam as flautas bem envolvidas em pequenas mantas quentes e em caixas que isolam a temperatura. Porque o ar frio dos Andes rebenta com elas”, explica Sergio.

No seu quintal em Caracoli, nos arredores de Barranquilla, várias canas de carrizo estão já cortadas, prontas a transformar-se em flautas. Sergio chega com dois grandes pés de millo (milho-miúdo), de espiga comida pelos pássaros, para nos mostrar a diferença entre os vários materiais.

Do milho ao canto

O riquexó atravessa uma longa estrada em construção, no caminho de Malambo. É cedo pela manhã mas o sol já pica em força, e o asfalto fumega no chão. É quase um alívio deixar Barranquila, o seu trânsito caótico e os seus arranha-céus para trás e entrar no campo de milho farto e matas de papaia maduras. A sombra da estrada é desenhada por carvalhos de flor amarela – Janeiro está a chegar ao fim, Fevereiro está à porta e, com ele, o Carnaval e a Primavera.

Para Caracoli, terra de Sergio Zambrano, vira-se à esquerda no cimo da estrada, logo a seguir a um altar com flores. Os murais que cercam as pequenas fincas estão cobertos de pinturas em homenagem a grandes clássicos da literatura: Moby Dick, A Odisseia, Robinson Crusoe, Cem anos de solidão. Caracoli é uma pequena aldeia de “cerca de mil casas”, em Malambo, distrito de Barranquilla. Sergio vive aí com a mulher e os filhos (e vem mais um a caminho). Com amigos do bairro, vizinhos, miúdos, tambores e maracas, fazem ali no quintal uma banda improvisada: tocam, sob direcção de Sergio, uma série de canções para as visitas. Sergio David, o filho mais velho, tem 14 anos e também é flautista. Foi o pai que lhe fez a flauta que leva atravessada na boca.

“Uma flauta deve ter, em comprimento, a palma da mão aberta e mais quatro dedos”, explica Sergio, abrindo a mão e segurando a cana ainda por cortar. “É por isso que todas as flautas são diferentes: dependem dos nós naturais da cana de milho, mas também do músico que a vai tocar.”

Sergio pega na cana e corta-a nas extremidades, usando outra como referência. Apoia o serrote e fá-lo ali mesmo, sobre as pernas. Limpa-a bem, por dentro, retirando as fibras com a força e a velocidade de um berbequim. E começa a desenhar a lingueta: “O mais importante da flauta é uma boa lingueta. Se a cana não está bem seca, se ainda tem sucos, é pela lingueta que se esvazia o som. Uma cana que hoje soa de uma determinada maneira, se não está pronta, amanhã perde força e deixa simplesmente de soar.”

É por isso surpreendente que, ali sentado sobre o muro do seu quintal, Sergio pegue no serrote, naqueles grandes parafusos e nas agressivas lixas para moldar uma flauta enquanto fala connosco, como se estivesse a descansar. Não há esforço em vão, não há pingo de suor, há apenas a naturalidade de quem já faz flautas desde há muito tempo. E logo diz: “Esta flauta agora está boa, mas daqui a uns dias nem funciona”, explica, enquanto pede à mulher que ponha o ferro a arder no forno de lenha para poder abrir os buracos na cana. Enquanto desenha a lingueta, abre os buracos, um a um, vai experimentando com a flauta, beijando-a. Primeiro ao de leve. Descobre um som “agudo, claro e brilhante, como deve ser”, porque quando é um “som grave, opaco, é porque não está no ponto”. Depois, quando o som sai forte, puxado do centro do abdómen, sabe que pode ir mais longe – “a flauta pede mais”, explica. E desafiado por ela, levanta ligeiramente a lingueta com a língua e a flauta penetra com mais força, obliquamente, na boca. O som sai como se fosse um rouxinol e de imediato sabemos que o cañamillero acabou de pôr a máscara.

O sabro da cana

Não há duas flautas iguais. Não há “um cânone da flauta”. As mais longas são mais graves; as mais curtas, agudas. E a afinação depende do tom que se deseja. Cada cañamillero traz sempre consigo várias flautas, dependendo da música que vai tocar.

Além de cañamillero, Sergio faz e vende flautas para toda a região, para vários músicos de cumbia, como Pedro “Ramaya” Béltran, o maestro da flauta, cañamillero de alma e coração, talvez um dos mais importantes da Colômbia. E vive apenas a três passos de Caracoli.

Buscamos Remayá, mas não sabemos bem onde vive. Na esquina, um vendedor de abacates: “Ei, papi, onde vive Remayá?”, grita o taxista da janela. O vendedor indica a casa como se fosse a farmácia local, a cura para todos os males vem do som da caña de millo.

Remayá recebe-nos na varanda da sua casa, decorada com os típicos chapéus adornados do Carnaval de Barranquilla. A sua flauta soa a cada cinco minutos, numa demonstração de puro talento. “Comecei quando tinha oito anos, era muito jovem.” Agora são 82: a idade pesa, já não consegue cantar como soa a flauta, “quando o som é muito alto, muito agudo, já não consigo acompanhar”. Mas está a fazer tratamento para poder estar “pronto para o Carnaval, daqui a quinze dias”. E, claro, vai tocar.

Está sempre a tocar, aliás, como naquela hora sentado no fresco da varanda, baloiçando-se na cadeira, canção atrás de canção, para contar como a influência de primos o “empurrou” da gaita, “que tocava tão bem”, para a caña de millo, de que é hoje “maestro de várias gerações”. Soube que o coração se inclinava – como a sua boca, afinal – para a caña “quando numa noite escura, muito escura, sem nuvens, me pediram para tocar” numa roda de cumbiamba. “A lua brilhava, só havia a sua luz, e com coqueteria ela era a testemunha daqueles pares bailando a roda de cumbia”, seduzidos pelo som do pito atravesado e pela batida dos tambores, índios e negros em perfeita comunhão, dançando.

Totó la Momposina, famoso músico da cumbia, escreveu no seu álbum La Candela viva (1993) que a “cumbia é um excelente exemplo dos sentimentos combinados dos indígenas, espanhóis e da cultura africana”, uma dança de galanteio entre “homens negros e mulheres indígenas quando as duas comunidades começaram a casar-se”. É desse diálogo entre o “pequeno pássaro” da terra, indígena, pré-colombiano, e o tambor africano, quente e sensual trazido pelos escravos que nasce a cumbia, a “rainha do Carnaval de Barranquilla”, diz Rafael Bassi Labarrera, gestor cultural, director de programas de rádio e consultor do festival internacional de jazz de Barranquilla.

“É verdade que quando soa aquela flautinha, todo o mundo se levanta. As mulheres começam por mover os pés e depois as cadeiras, e a dançar”, continua Bassi. É a flauta que provoca esse encantamento, como se atraísse a serpente para fora do cesto. Remayá descreve assim o diálogo entre a caña e os tambores, índios e negros, na cumbia tradicional: “O tambor chama, sente-se aquele chamamento firme, quente, que levanta o corpo e depois chega a flauta de milho, que comunica com o tambor para fazer o corpo serpentear. É uma conversa entre dois instrumentos, uma comunicação. A flauta sabe o que tem de fazer.”

Hoje Remayá já não constrói as suas flautas – compra-as a Sergio. Só ali na mochila tem quase umas dez. Na vida, já usou mais de três mil. Maestro, dizem-lhe. E recebe jovens flautistas em casa, “que às vezes querem aprender como se produz este ou aquele som”. É generoso, sorri, recebe-os de braços abertos, partilha os seus segredos: “Sou descomplicado, sou humilde.” O seu estilo, confessa, “é diferente, é meu, e isso está no sabor que eu dou à flauta de millo, porque o sabor da cana é especial”.

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