A música é o segredo de uma boa parranda, termo espanhol intraduzível que define uma noitada festiva com fartura de bebida e comida. Numa noite de sábado em Mompox, povoado colonial às margens do rio Magdalena, no norte da Colômbia, considerado Patrimônio da Humanidade pelaUnesco, o grupo mais tradicional da região, El Negro Salas y Mañe Arce, foi contratado para animar uma parranda que celebrava a formatura da filha e do sobrinho da dona da casa, Nidia Arévalo. Enquanto mais de 40 parentes e amigos se espalhavam por mesinhas de plástico na calçada e na rua de terra, bebendo rum e comendo pasteizinhos, o conjunto abriu a noite com “Hombre parrandero”, clássico do gênero musical que é um dos símbolos da cultura colombiana, o vallenato.
Estilo preferido de Gabriel García Márquez, que o considerava uma influência tão importante em sua literatura quanto as obras de James Joyce e William Faulkner, o vallenato tem uma história que espelha a da música popular no Brasil e na América Latina. Desprezado por muito tempo como traço cultural da população pobre, chegou a ser perseguido pelas autoridades, foi revalorizado por artistas e intelectuais em meados do século XX, e hoje existe em diversas variantes, do pop ao purista. Na região andina da Colômbia, mais rica, onde fica a capital Bogotá, ainda é visto por muitos como a música da região costenha, mais pobre, mas produz ídolos nacionais como o cantor Carlos Vives, ganhador de vários Grammys. Com a popularização do gênero, há quem considere as formas tradicionais ameaçadas de extinção, mas sua essência sobrevive em conjuntos de provincia como El Negro Salas y Mañe Arce. Naquela noite de sábado, eles se apresentaram na varanda da família Arévalo, em um palco improvisado entre cadeiras de balanço, com a formação clássica do vallenato: voz, acordeão, tambor e guacharaca, instrumento indígena de madeira que é empunhado como um violino e raspado com uma espécie de pincel de arame.
O coração de um grupo de vallenato é o acordeonista, como deixa claro a letra de “Hombre parrandero” (“Quando toco meu acordeão orgulhoso/ esse é o momento mais prazeroso”). Fundador do grupo batizado com seu apelido, Manuel “Mañe” Arce Nieto, de 64 anos, diz ter aprendido a tocar sozinho, aos 7 anos, quando pediu um instrumento ao pai. Em 2008, depois de uma enchente no povoado de Guataca, onde vive, matar um de seus sete filhos, de 37 anos, e um neto, de 4 anos, ele abandonou a música pela primeira vez em cinco décadas. Só voltou um ano mais tarde, por insistência dos amigos, e fundou o grupo com o cantor Emiro José “Negro” Salas, de 48 anos.
Quem visse Mañe Arce naquele sábado, tocando com um sorriso largo e acariciando o acordeão no intervalo entre as músicas, não imaginaria a tragédia recente.
- Parei de tocar porque fiquei triste, mas meus amigos me diziam: “Você tem que voltar, sua profissão é essa” - diz Mañe Arce, que admira os “acordeonistas completos” do vallenato, que tocavam, cantavam e compunham, como Pacho Rada e Calixto Ochoa, mito da música colombiana morto dois dias antes, aos 81 anos. - Acordeonista bom é o que faz a nota ser entendida.
Criado na Alemanha na primeira metade do século XIX, o acordeão deu o tom da música popular em toda a América Latina ao longo do século XX. Além de protagonista, é tema de canções do vallenato colombiano (“Mi acordeón”, de Emiliano Zuleta), do tango argentino (“Che bandoneón”, de Homero Manzi) e do baião brasileiro (“Sanfona sentida”, de Luiz Gonzaga). Na Colômbia, acredita-se que o instrumento chegou com os navios europeus que subiam o Rio Magdalena, o maior do país, que percorre 1,5 mil quilômetros da nascente, na Cordilheira dos Andes, até a foz, no Mar do Caribe. O percurso foi cantado no vallenato “Rainha de três coroas”, de Alfredo Gutiérrez, sobre o instrumento de “pura e fina estirpe saxã” que na Colômbia “tem seu reino”.
O primeiro a reivindicar o acordeão como símbolo da cultura colombiana foi García Márquez. Em uma de suas colunas no “El Universal”, de Cartagena de Indias, onde começou a carreira de jornalista, em 1948, ele o descreve como “um instrumento proletário” e “um fole nostálgico,
amargamente humano, com um tanto de animal triste”. Reconhece sua origem nas esfumaçadas
tabernas alemãs e menciona sua popularidade em outros países latino-americanos, mas reivindica um caráter especial para o acordeão colombiano: “O acordeão real e legítimo é o que pediu cidadania entre nós, no vale do Magdalena”, escreve.
No livro de memórias “Viver para contar”, García Márquez recorda seu fascínio pelo acordeão nas festas de rua da Aracataca de sua infância ou nas animadas viagens de barco Magdalena acima e abaixo, quando era estudante em Bogotá e passava férias na casa da família. Mais tarde, as canções vallenatas, que narravam em linguagem simples e poética histórias do dia a dia e lendas da cultura popular colombiana, foram uma inspiração decisiva para o estilo de suas obras. Um dos maiores compositores do país, Rafael Escalona, grande amigo do escritor, foi transformado em personagem de “Cem anos de solidão”, onde aparece também a lenda de Francisco El Hombre, músico que teria vencido um duelo de acordeões com o diabo. García Márquez dizia em entrevistas que seu romance mais conhecido era “nada mais do que um vallenato de 400 páginas”.
- Gabito gostava de cantar e dizia que a única pessoa de quem sentia inveja nessa vida era nosso irmão Luis Enrique, porque fazia coisas que ele não conseguia, tocava piano e violão – diz Jaime García Márquez, de 74 anos, oitavo dos dez irmãos do escritor. - E Luis Enrique era mesmo o gênio da família – brinca.
Para o crítico e professor colombiano Ariel Castillo Mier, autor de livros sobre García Márquez e sobre a música popular colombiana, as composições de vallenato foram uma fonte tão importante para a obra do escritor quanto as histórias que ouvia dos avós na infância. Em ambos os casos, encontrou elementos para construir seu estilo marcado por “hipérboles e uma visão de mundo que borra os limites entre o real e o imaginário”.
- Há uma vertente da música de acordeão na qual predomina o relato, que serviu de modelonarrativo para García Márquez em seu projeto de expressar a realidade regional do Caribe colombiano em obras de alta qualidade estética. Os cantos da música de acordeão eram compostos por camponeses e vaqueiros analfabetos, que encarnavam a visão de mundo popular com dignidade e pertencimento – diz Mier.
Essa visão de mundo foi expressa nas últimas décadas em várias vertentes do vallenato. As quatro mais populares são son, paseo, merengue e puya, que se distinguem uma da outra pelo andamento.
A região do Rio Magdalena é conhecida pelas composições de son, mais lentas e dramáticas. Em Mompox, El Negro Salas y Mañe Arce é o único grupo dedicado aos ritmos tradicionais. Mas há outros conjuntos mais jovens na cidade de 65 mil habitantes, fundada em 1537, onde a qualquer hora o ritmo acelerado das versões modernas do vallenato, saindo a todo volume dos rádios nas casas e nasmotos, contrasta com a arquitetura colonial espanhola e a tranquilidade das ruas arborizadas.
Numa noite de sexta-feira, três músicos do grupo Clan SM se encontraram na Plaza de Bolivar, no centro histórico de Mompox: o cantor Eduardo Arce, de 27 anos, o guitarrista Breitner Arias, de 26, e o percussionista Wilmer Mendes, de 28. Além de acordeão, guacharaca e tambor, a formação inclui instrumentos como guitarra elétrica e teclado. Eles trouxeram um violão e, entre uma música e outra, mostraram nos smartphones vídeos de seus shows. Clan SM tem um som mais enérgico do que El Negro Salas y Mañe Arce, mas os músicos jovens não se consideram parte do que é chamado na Colômbia de “nueva onda” do vallenato, mais próxima do pop romântico. No violão, Breitner mostra a diferença entre os estilos: os cantores da “nueva onda” alongam as sílabas em vibratos melosos, enquanto o canto “vallenatado” é mais seco, marcando as sílabas.
- Antigamente, escreviam as músicas para uma mulher, para as estrelas, para uma cidade. Coisas duradouras, que não se perdem. Hoje compõem para o momento, para a noitada. Quando a moda passa, a musica passa também – diz Breitner, que faz questão de cantar uma música que escreveu para o filho de 1 ano e 8 meses, Moisés, mas é interrompido pelo menino, que insiste em passar a mão nas cordas do instrumento (“Vai ser músico!”, caçoam os colegas de banda).
Breitner e Eduardo trabalham pilotando os mototáxis que zunem o dia todo pelas ruas de Mompox.
Não conseguem viver de música e reclamam da falta de espaço nos festivais de vallenato do país. O mais famoso é o Festival da Lenda Vallenata, que acontece todo ano desde 1968 em Valledupar, cidade do vale do Rio César, afluente do Magdalena, considerada a capital do gênero. Mesmo mais experientes, os músicos da El Negro Salas y Mañe Arce têm as mesmas queixas. Dividem 200 mil pesos colombianos (cerca de R$ 250) por hora de apresentação, como a da parranda da familia Arévalo. Naquela noite de sábado, tocariam em outra parranda, à meia-noite, e em mais uma no domingo, ao meio-dia. Os festivais são alvo de uma das composições de Emiro Salas, para quem os eventos privilegiam o vallenato romântico: “O que estará acontecendo agora com os festivais?/ Não apresentam mais, meus amigos, os sones”.
O jornalista e escritor Daniel Samper Pizano, de 70 anos, autor de vários livros sobre música popular e organizador de uma coleção sobre vallenato, publicou em 2013 um artigo intitulado “O vallenato está se suicidando”. Nele, argumentava que, com a morte de mestres como Escalona e Zuleta, a onda romântica podia tomar conta do gênero e ofuscar os clássicos.
- Até meados do século XX, o vallenato era música de prostitutas e camponeses. Chegou a ser proibido até no Clube Social de Valledupar, porque era considerado indecente. Aos poucos foisubindo de status, e hoje é tocado até no Teatro Colón de Bogotá. Mas é preciso uma visão crítica sobre o vallenato romântico, com suas letras choronas que parecem escritas por um condenado à morte – diz Pizano, para quem o meio de criar essa visão crítíca é incentivar o estudo das variantes clássicas.
Os músicos da El Negro Salas y Mañe Arce gostariam que a Casa de Cultura de Mompox oferecesse oficinas de vallenato. Enquanto isso não acontece, dão aulas particulares. Um dos alunos do acordeonista Mañe Arce é o sobrinho da família Arévalo que comemorava sua formatura na parranda de sábado. Andrés Rizo, de 16 anos, começou a ter aulas há cinco meses. Já aprendeu seis músicas, que gosta de tocar com os amigos. É fã de vallenato, mas também do moderno e dançante reggaeton. Assim o acordeão vai mantendo o que García Márquez descreveu, há quase 70 anos,como “sua longa trajetória boêmia, sua irrevogável vocação de vagabundo”.