Uma referência para o jornalismo de qualidade

Uma referência para o jornalismo de qualidade

Enquanto o novo ano não se torna rotina, segue valendo a tradição de colocar foco em experiências e reflexões que apontam para possibilidades que transcendem o pragmatismo selvagem do cotidiano.
Alan Rusbridger en 1995. Fotografía: The Guardian
Veet Vivarta

Enquanto o novo ano não se torna rotina, segue valendo a tradição de colocar foco em experiências e reflexões que apontam para possibilidades que transcendem o pragmatismo selvagem do cotidiano. Na pior das hipóteses, o impacto deste tipo de referência nos eleva por um par de horas e, em seguida, se dilui em meio a nossos padrões automatizados de pensamento e atuação.

No melhor cenário, porém, podemos encontrar nesses pontos fora da curva uma reserva mais perene de inspiração a animar nossos esforços em meio aos pequenos e grandes problemas que os meses adiante devem trazer.

Vamos então dar voz a Alan Rusbridger, que por duas décadas foi editor-chefe de The Guardian. No final de maio passado ele escreveu uma extensa carta de despedida a seus leitores – algumas passagens certamente podem fortalecer a disposição de quem opera no contexto do jornalismo latino-americano, frente a esse 2016 que se inicia…

Vale registrar, antes de tudo, que o texto de Rusbridger merece ser apreciado do começo ao fim, pois guarda valiosas lições para qualquer profissional da informação. Repercutiu amplamente na época da publicação da carta, por exemplo, o trecho em que ele reconhece o impacto das novas tecnologias sobre o cargo que ocupava: uma agenda historicamente voltada ao fazer jornalístico, como a de editor-chefe, passou a incorporar, de forma obrigatória e em tempo integral, a gestão de questões relacionadas ao negócio da mídia (na prática, medidas adotadas por Rusbridger na era da internet contribuíram para que, no período em que redigia sua mensagem de despedida, The Guardian já estivesse disputando com The New York Times o título de maior site noticioso do mundo em língua inglesa).

O que nos interessa mais de perto como viés motivador, contudo, é o momento em que Rusbridger descreve o sentimento de privilégio por ter trabalhado durante tantos anos em um jornal cuja autonomia editorial havia sido garantida por meio do estabelecimento de um robusto fundo financeiro, no longínquo 1936 – decisão tomada por John Scott, herdeiro dos negócios na área de mídia criados por sua família mais de um século antes.

A admiração que cerca a atitude de Scott, aponta Rusbridge, é melhor exemplificada por meio da frase atribuída a Sir William Haley, ex-editor do jornal The Times: “Ele poderia ter sido um homem rico; e optou por uma existência espartana. E quando decidiu despojar-se de qualquer lucro ou benefício, ele o fez sem qualquer demonstração emotiva, como se estivesse resolvendo um problema de álgebra”.

Altruísmo e visão de futuro

A aposta feita por John Scott tinha como fundamento a percepção do jornalismo como uma força tão estratégica para as sociedades democráticas que sua independência deveria ser resguardada, da melhor forma possível, contra as pressões que inevitavelmente seriam produzidas pelos interesses estabelecidos, fossem eles de cunho político ou econômico.

Em qualquer lugar do planeta, a capacidade de alimentar uma perspectiva tão visionária é algo extremamente raro. Mas em particular, em se tratando do campo da mídia, a América Latina tem muito a invejar quando apresentada às condições de que hoje usufrui The Guardian, em termos de liberdade investigativa e de adesão aos princípios éticos que fundamentam o jornalismo de qualidade.

Em nosso continente, a existência de vínculos democraticamente nada saudáveis marca a história das relações dos grandes grupos de mídia com os governos de turno, sendo que em inúmeras situações estes modelos clientelistas já formatavam o próprio processo de criação dos órgãos noticiosos. Uma expressão especialmente traumática dessa incestuosidade foi o apoio manifestado pelos principais jornais e emissoras de diversos países aos golpes militares que se multiplicaram na região a partir da segunda metade do século passado (mesmo que, tempos depois, as redações passassem a questionar a prática da censura estatal e, até mesmo, a posicionar-se contra estes regimes).

E no que se refere aos tempos de hoje, sabemos todos, ainda predomina no panorama latino-americano o envolvimento próximo das empresas de comunicação com cores político-partidárias específicas. Esse fenômeno contamina as linhas editoriais, constantemente ferindo a possibilidade de o jornalismo cumprir com sua missão maior – a de nutrir um debate público diverso e plural, que sirva aos interesses superiores da sociedade.

Uma dose de alento

Diante desse tipo de trajetória, o relato de Alan Rusbridger, transcrito a seguir, pode simplesmente parecer o resultado de uma imaginação fértil. Porém, vale repetir, é precisamente essa a intenção de disponibilizar sua leitura: quem sabe uma dose extra de esperança nos ajuda a continuar trabalhando, nesse ano de 2016, por um jornalismo no qual a ética não resida apenas na periferia, mas sim ocupe espaço cativo no processo de produção da notícia e no foco de sua incidência política.

“A decisão da família Scott de abrir mão de qualquer interesse financeiro no Guardian deve constar entre as grandes ações históricas de uma filantropia voltada para o público. Ao fazê-lo, eles criaram uma estrutura de propriedade com dois objetivos: garantir o futuro do Guardian em termos perpétuos e proteger sua independência em qualquer situação, a qualquer custo e contra quaisquer concorrentes.

A questão da perpetuidade é, obviamente, um trabalho que está sempre avançando – embora a construção de um investimento de 1 bilhão de libras signifique uma sólida fundação para o futuro. O papel do Guardian Media Group – o braço comercial da operação – foi fundamental.

A independência que o Fundo Scott nos concedeu manifesta-se de centenas de maneiras. Pouco antes da recente eleição geral, durante a hora do almoço, cerca de 200 pessoas estavam numa sala tentando decidir qual partido – se é que algum deles – apoiar. Não havia qualquer tipo de mensagem vinda de cima, explícita ou implícita. Certa ou errada, a decisão cabia exclusivamente ao nosso grupo.

Esse mesmo espírito está ali a cada manhã, quando qualquer pessoa da equipe pode vir à reunião matinal de pauta – para ouvir, para contribuir, para desafiar, para assimilar. Estava ali quando as pessoas que subscreveram a ação de difamação do ministro Jonathan Aitken exigindo que a TV Granada, igualmente acusada, capitulasse – enquanto o Fundo Scott nos dizia que lutássemos. Estava ali quando o Estado e vários políticos vieram pedir que suspendêssemos as matérias sobre Snowden. O fundo tinha a resposta perfeita: não podemos.

Estava ali sempre que este editor precisou das duas corujas mais sábias – Hugo Young e Liz Forgan. Está ali nas palavras do ensaio centenário escrito por C.B. Scott em 1821, no qual ele fala do equilíbrio entre a existência material e a existência moral de um jornal – entre lucro e poder. Nunca uma questão foi tão importante para ele quanto essa.

O poder acima do lucro. Mas mesmo isso, num contexto moderno, deixa-me um pouco inquieto. Termino com uma confissão sobre o trabalho de editor e uma angústia persistente sobre essa história de poder.

Um editor – se ele ou ela assim quiser – pode ser uma pessoa realmente poderosa. Os editores podem fazer e podem desfazer as pessoas. Eles determinam quem tem o direito de voz e quem continua mudo. Eles podem intimidar e assustar quem quiserem. Podem impor suas opiniões num jornal e, por intermédio desse jornal, num país e nas vidas de milhões de pessoas.

Como vimos, eles podem infringir a lei enquanto investigam vidas privadas – com a razoável confiança de que ninguém os irá deter, nem mesmo a polícia ou o órgão de regulação. Podem ter uma influência desproporcional no decorrer de debates – para isso basta excluir os argumentos contrários. Uma voz pode dominar um jornal por completo, da primeira página, ao longo das páginas de notícias e das colunas editoriais, até a seleção de alguns para serem comentaristas.

As pessoas ainda se ajoelham a este tipo de poder, mesmo numa época em que se acredita que a influência da grande mídia esteja em declínio. Na minha modesta maneira, eu o experimentei em primeira mão. E, de certa forma, isso me satisfaz. Desejo que as instituições do Quarto Estado sejam fortes. Num mundo do poder globalizado, distante e muitas vezes inexplicável, uma fonte investigação e influência compensatória é mais necessária do que nunca.

Mas eu nunca quis que o Guardian fosse minha voz – nem meus colegas do Guardian o iriam querer ou permitir. C.P. Scott viu com clareza que um jornal deve esquivar-se às ‘tentações de um monopólio… A voz dos opositores tem o direito a ser ouvida, não menos que a dos amigos’.”

(Tradução do inglês ao português originalmente publicada pelo site do Observatório da Imprensa)

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