Distante de ser um modismo, o jornalismo de soluções é uma prática criteriosa que não descreve somente os problemas.
O jornalismo de soluções costuma ser confundido com propaganda ou um compilado de histórias positivas. Entretanto, trata-se de uma prática jornalística criteriosa como todo jornalismo deve ser. O fio condutor da reportagem é a solução, mas isso não deve excluir a apresentação detalhada do problema nem esconder as limitações.
É necessário detalhar o processo da implementação e de como funcionou ou não a ação, dizer quais foram os resultados e apresentar uma nova informação ou perspectiva e incluir pessoas, mas se concentrar no processo de resolução. Segundo a Rede de Jornalismo de Soluções (SJN - Solutions Journalism Network), “é a cobertura rigorosa e baseada nas evidências das respostas a problemas sociais”.
A entidade ainda ressalta que o foco não deve ser uma intenção, pois é necessário mostrar resultados mesmo que iniciais. A evidência exigida deve ser a suficiente para sustentar a credibilidade da reportagem. Além disso, não deve ser uma história estilo superação, publireportagem ou release nem dá protagonismo a uma pessoa como “herói”.
Trata-se de um trabalho que exige uma pesquisa detalhada, análise de dados quantitativos ou qualitativos e conversas com especialistas que não estejam envolvidos nas iniciativas citadas. Não convém para uma notícia de última hora, mas também não é sinônimo de investigações muito longas ou que custem caro. Uma situação local pode muito bem render uma reportagem econômica e que necessite de menos tempo para apuração.
Um exemplo é a reportagem publicada em junho de 2019 no site 32xSP, projeto da Agência Mural de Jornalismo das Periferias e da Rede Nossa São Paulo. O trabalho fala sobre parto humanizado com destaque para moradoras de regiões periféricas. Mostra a atuação de centros de partos no Jardim Ângela e Sapopemba, distritos localizados na periferia da capital, e cita o parto domiciliar.
As repórteres Jéssica Bernardo, Lara Deus e Paula Rodrigues expõem os resultados dessas ações para o bem estar de gestantes e informações que apontam que as iniciativas locais devem ser ampliadas e podem ser replicadas em outras regiões do Brasil. No entanto, para conduzir a discussão, as jornalistas não deixam de falar sobre violência obstétrica, a falta de profissionais com treinamento nas práticas de humanização na rede pública de saúde e o valor alto para dar a luz na própria casa.
Algo importante para definir se a pauta é válida para a vertente de jornalismo de soluções é verificar se o problema é amplamente compartilhado, se diferentes lugares enfrentam situações semelhantes e o que está sendo feito para resolver. Algum lugar pode estar agindo de uma maneira que pode servir de exemplo aos outros. Logo, ele pode ser o foco da história.
No workshop de jornalismo de soluções realizado em maio de 2019 pela Fundação Gabo, a jornalista Liza Gross fez uma provocação interessante nesse sentido. Se temos 10 hospitais, sendo que apenas um cumpre requisitos mínimos de atenção a gestantes, qual é o gancho para uma reportagem de jornalismo de soluções? O único que cumpre os requisitos ou os nove que estão fazendo algo errado? A investigação deve começar por quem está fazendo certo e isso não significa que os outros nove serão ignorados.
Em entrevista a Fabrice Le Lous para a versão em espanhol desse blog, Tina Rosenberg, ganhadora do Pulitzer de jornalismo em 1996 e cofundadora da Rede de Jornalismo de Soluções, destaca um exemplo real de mudança de foco. No ano 2000, Rosenberg queria escrever para a revista do The New York Times uma reportagem sobre o preço de medicamentos para tratamento contra a AIDS em países pobres, mas o editor achou a proposta muito deprimente. Rosenberg reavaliou a ideia e descobriu que no Brasil eram fabricados medicamentos genéricos e distribuídos gratuitamente pela rede pública de saúde. A jornalista reformulou a pauta para falar sobre o assunto a partir do exemplo brasileiro e publicou a reportagem Look at Brazil.
Enfim, responder algumas perguntas básicas pode ajudar a pensar na construção da pauta. Quem está fazendo melhor determinada ação? Em qual nível a resposta funciona e em qual não funciona? Se foi algo implantado em outros lugares, quais os resultados? Quais são os obstáculos para replicação? Quais são os parâmetros de sucesso relevantes? Às vezes, nem todas as perguntas terão uma resposta, mas o que foi respondido pode ter potencial para sustentar a pauta.
Importante salientar que o jornalismo de soluções não é restrito a uma editoria. Pode ser aplicado em saúde, meio ambiente, educação, gênero, violência, política, economia etc. Veja o caso da reportagem produzida por Marcelle Souza para o Ecoa, um dos canais do UOL. A publicação de julho de 2020 destaca o trabalho de grupos que tentam recuperar a história de negros em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Salvador. São iniciativas com foco em turismo, comunicação, história, geografia e urbanismo para a população em geral. A partir dessas iniciativas, Souza chama a atenção para o racismo e o apagamento de uma história.
Da mesma maneira que pode ser aplicado em diversas editorias, o jornalismo de soluções não é restrito a um formato. Pode ser apenas texto, vídeo de internet, áudio, mas também reportagens de TV como as do programa Cidades e Soluções, da GloboNews, ou um especial com gráficos etc.
Um exemplo é o especial publicado no último mês de abril pelo Nexo Jornal sobre a criação do SUS (Sistema Único de Saúde), maior sistema público de saúde do mundo. Segundo o Nexo, trata-se de uma ferramenta de consulta sobre a história do que ele chama de marco legal, sanitário e social brasileiro. O material conta com textos, gráficos e áudios com falas de especialistas.
Por fim, o jornalismo de soluções deve ser cético, explicativo, questionador e criar um circuito “aberto” de diálogo. É uma prática jornalística que não tem o intuito de tirar o espaço de reportagens com foco em denúncias, mas que oferece variedade de foco para um veículo de comunicação.
Sobre o projeto de jornalismo de soluções na América Latina
A Fundação Gabo e a Rede de Jornalismo de Soluções (SJN, sigla em inglês) trabalham em aliança em um projeto que busca formar e incentivar jornalistas da América Latina a aplicar o jornalismo de soluções, enfoque que busca investigar e narrar histórias que abordem respostas que dão ou poderiam dar a cidadãos e instituições a problemas sociais na região.
O projeto, apoiado pela Fundação Tinker, contempla a difusão e apropriação de ferramentas e guias, assim como a realização de atividades de formação como workshop, seminários virtuais e desenvolvimento de espaços de aprendizagem em redações de alguns veículos de comunicação da região interessados na modalidade.