Como uma jornalista usa o jornalismo de soluções para falar da seca e romper estereótipos sobre o sertão

16 de Septiembre de 2020

Como uma jornalista usa o jornalismo de soluções para falar da seca e romper estereótipos sobre o sertão

A reportagem conta com histórias de agricultores para mostrar os benefícios e gargalos do programa de cisternas .

A jornalista Beatriz Jucá durante a viagem por cidades cearenses. Foto: Fernanda Siabra
Priscila Pacheco

Nordestina da cidade de Cedro, no sertão do Ceará, a jornalista Beatriz Jucá trabalha no El País Brasil, em São Paulo, desde 2018. Foi no El País que em julho ela publicou uma série de reportagens sobre o programa das cisternas, reservatórios de água, no semiárido brasileiro. 

Junto com a fotógrafa Fernanda Siebra, Beatriz viajou para cinco cidades do Ceará com o intuito de mostrar que uma política pública eficiente, mas que tem perdido recursos nos últimos anos, revolucionou a vida de moradores dessas regiões que sofrem com a seca. A ideia da pauta surgiu em 2019 a partir de uma conversa com uma colega do sudeste, que não conhecia muito bem o programa das cisternas. “Sou do sertão do Ceará e o meu avô era agricultor. Então, para mim é muito óbvio a importância da cisterna. Decidi mergulhar nessa história para contar”, comenta.

À época, Beatriz estava tentando treinar o olhar jornalístico para produzir mais reportagens com foco em soluções. “A gente tem uma realidade tão pesada, mas você poder reportar a realidade dura por meio de soluções achei que faria mais sentido até para o jornalismo”, diz. A jornalista fez a inscrição da pauta na edição 2019 do programa de bolsas de jornalismo de soluções, da Fundação Gabo e da Rede de Jornalismo de Soluções (SJN, sigla em inglês) com apoio da Fundação Tinker, e foi uma das escolhidas.

Apesar de o projeto das cisternas parecer óbvio para Beatriz, durante a apuração ela descobriu benefícios mais amplos. Por exemplo, a diversificação da alimentação, a maior autonomia das mulheres e o compartilhamento de conhecimento, de tecnologias próprias para economizar água. Com a chegada da pandemia de Covid-19, Beatriz também pode mostrar que as cisternas são um alento para as famílias, porque contribuíram para evitar a fome e garantir a permanência das pessoas no campo.

A série é dividida em três textos e uma galeria de fotos. Na reportagem intitulada Veio a peste, mas neste ano Deus mandou a chuva para encher a cisterna Beatriz explica o que é o programa, mostra por meio de dados e gráficos a série histórica da quantidade de cisternas construídas e os valores investidos pelo Governo Federal até 2019. Além disso, traz a história do agricultor Francisco Monteiro, morador de  Quixeramobim.

Francisco contou a Beatriz que várias gerações da família dele sempre precisavam migrar para fugir da seca e da fome, mas o ciclo de fuga foi rompida por causa da possibilidade de armazenar água na cisterna. Além de matar a sede e garantir a produção do próprio alimento, Francisco também costuma vender os vegetais em feiras agroecológicas, eventos que foram paralisados durante a pandemia. 

Logo na primeira história, Beatriz traz as limitações do programa por meio de dados e da realidade do próprio Francisco. Afinal, a função do jornalismo de soluções não é contar o lado bom das coisas e ignorar que existem problemas. “No caso das cisternas, nós trazemos os buracos, a falta de universalização do programa, os recursos que vêm minguando”, comenta. Francisco, por exemplo, tem os dois tipos de cisternas, a de água para beber e a para produção agrícola. Entretanto, dois filhos estão sem esperança na fila de espera para receber a cisterna de armazenamento de água para beber. 343.035 famílias ainda aguardam entrar para o programa.

Em O invento que mudou a dieta do sertão Beatriz discorre sobre o enriquecimento da alimentação por meio da história de Loudizete de Almeida Farias. A moradora de Pedra Branca tinha uma alimentação restrita a grãos, batata doce e abóbora, mas ao ser beneficiada com o reservatório de segunda água, o maior que acumula o líquido para produção agrícola, pode plantar no próprio quintal diferentes tipos de alimentos. Foi a partir dessa variedade que a família de Loudizete comeu espinafre e berinjela pela primeira vez, por exemplo. 

Além de diversificar a produção, a agricultora aprendeu técnicas de agricultura específicas para áreas secas, como colocar galhos secos nas raízes das plantações para desacelerar a evaporação da água. Ela vende a produção extra e ensina receitas para a clientela. Nessa reportagem, Beatriz também mostra dados da demanda de cisternas por estados tanto da de água para beber quanto a específica para produzir. Outra limitação apresentada é a falta de transparência do governo. A jornalista questionou o Ministério da Cidadania, responsável pelo programa, sobre o futuro da implantação de cisternas e as metas de construção específica do reservatório para produzir.

A terceira história contada por Beatriz tem como protagonista Antônia Márcia da Silva Lopes, moradora da zona rural do município de Quixadá. Conhecida como Marcinha, a produtora agrícola participou de diversas reuniões e cursos que contribuíram para que ela aprendesse a lidar com a água que possui nas cisternas. Atualmente, Marcinha compartilha esse conhecimento para que técnicas sejam replicadas em outros lugares. Além de já ter viajado para diversas cidades brasileiras, Marcinha já participou de eventos em outros países do corredor seco da América Latina. Ela ensina técnicas de gotejamento para regar a plantação com economia, reutilização da água do banho e da lavagem de roupas, produção de compostagem para adubar a própria plantação e vender o adubo etc. 

Enfim, Beatriz vai além da solução das cisternas e mostra outras ações que estão interligadas e podem ser replicadas. A jornalista expõe soluções com evidências comprovadas, mostra as limitações e humaniza os casos. Ir além dos dados e da explicação do que é o programa permite uma aproximação com o público leitor. 

Beatriz pensa que a série gerou mais repercussão do que outras reportagens já escritas por ela. “Recebi muitos e-mails, comentários no twitter. Aí vem aquela questão: o que eu achava tão óbvio, as pessoas não sabiam que existia ou não sabiam os efeitos”, comenta. Um exemplo é o caso de um leitor do nordeste que conhecia o programa das cisternas, mas nunca tinha visto a questão das mulheres liderando a produção de alimentos, vendendo e compartilhando o conhecimento. 

A propósito, as cisternas brasileira serviram de exemplo para a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura construir reservatórios em países africanos. Em 2018, a jornalista Marina Rossi escreveu também para o El País Brasil uma reportagem sobre o caso. Mostrou, inclusive, que agricultores brasileiros viajaram para Senegal para compartilhar experiências.

Por fim, questionada pela Fundação Gabo sobre se o jornalismo de soluções contribui para romper estereótipos sobre o nordeste, Beatriz respondeu que sim. Segundo a jornalista, a região nordeste é estereotipada pela questão da seca, mostrada como um local de pobreza com pessoas sem conhecimento e que precisam ser tuteladas. Além de ser apresentada pela mídia como um lugar homogêneo, mas são nove estados com realidades diferentes. Inclusive, é importante considerar as diferenças internas. A produção de Beatriz, por exemplo, trata de uma realidade rural no semiárido. 

Beatriz conta que com a série de reportagens, por meio de uma política pública que é a solução, traz a seca, mas não ilustrada com corpos magros e flagelados. A jornalista apresenta sertanejos que produzem conhecimento, que desenvolvem suas próprias tecnologias e têm uma preocupação, inclusive, ambiental e ecológica.

Contar histórias do nordeste é algo que agrada Beatriz e faz parte da sua trajetória jornalística, inclusive, com dois livros publicados. Um dos livros chama-se Unidos no roçado: vidas entrelaçadas em saudade e samba e conta a história de uma escola de samba formada por agricultores de Várzea Alegre, município do sertão cearense. Para arrecadar dinheiro para fazer o desfile de carnaval, os integrantes realizam eventos de cultura tradicional. Assim, também contribuem para a manutenção de outras tradições.

 

Sobre o projeto de jornalismo de soluções na América Latina

A Fundação Gabo e a Rede de Jornalismo de Soluções (SJN, sigla em inglês) trabalham em aliança em um projeto que busca formar e incentivar jornalistas da América Latina a aplicar o jornalismo de soluções, enfoque que busca investigar e narrar histórias que abordem respostas que dão ou poderiam dar a cidadãos e instituições a problemas sociais na região.

O projeto, apoiado pela Fundação Tinker, contempla a difusão e apropriação de ferramentas e guias, assim como a realização de atividades de formação como workshop, seminários virtuais e desenvolvimento de espaços de aprendizagem em redações de alguns veículos de comunicação da região interessados na modalidade.

 

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